Modos de habitar em Lisboa (1755-1836)*

Formas de habitar en Lisboa (1755-1836)

Ways of dwell in Lisbon (1755-1836)

 

 

Andreia Durães

Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade

Universidade do Minho

 

 

 

Resumen: En este artículo se analiza el papel de la vivienda como un mecanismo de diferenciación social, subrayando su dimensión escénica, apoyo a la comunicación con el exterior, señal de distinción social e económica. Con este fin, la casa urbana se abordará a partir de dos vectores fundamentales: análisis de formas de propiedad y de habitar.

 

 

Palabras clave: hogar; tipología; especialización funcional; diferenciación social

 

 

 

Abstract: This paper seeks to analyse the role of the house as a social differentiation mechanism, underlying its scenic dimension, and communication support with the other, and as signal of social and economic distinction. To do so, the urban house will be analysed from two fundamental points of view: forms of ownership and housing, in other words, to possess and to dwell.

 

 

Keywords: housing; typology; functional specialization; social differentiation

 

 

 

Resumo: O presente artigo pretende analisar o papel da habitação enquanto mecanismo de diferenciação social, sublinhando a sua dimensão cenográfica, de suporte de comunicação com o exterior, sinal de distinção social e económica. Para tal, a casa urbana será abordada partindo de dois vetores de análise fundamentais: formas de propriedade ou, por outras palavras, possuir e habitar.

 

 

Palavras-chave: habitação; tipologia; especialização funcional; diferenciação social

 


Modos de habitar em Lisboa (1755-1836)

 

            Introdução

 

De acordo com o dicionarista Bluteau a palavra casa podia significar geração, família; os móveis e criados de uma casa; uma “morada de casas, edificio, em que vive huma familia com seus moveis, & alfaias, amparada das injurias do tempo”; ou um aposento ou parte desse edifício, como a casa em que se dorme ou a casa ou sala em que se come[1]. O vocábulo era, e ainda é, polissémico. Por esse motivo é importante precisar o conceito para melhor definir o objeto de estudo do presente artigo. Importa referir que nos centraremos no terceiro sentido proposto, isto é, nos edifícios que abrigam os indivíduos e agregados alvo de estudo. Constitui móbil do presente trabalho conhecer as características das casas e espaços de habitação para perceber a materialidade das condições de existência dos indivíduos.

 

Acreditámos que a casa em que se habita reflete simultaneamente o nível social, cultural e o poder económico dos indivíduos. Procuraremos num primeiro momento aferir os diferentes tipos de vínculos que ligam os indivíduos às suas casas e as formas de propriedade dominantes bem como sistematizar os valores da sua avaliação, para aferir se estes dois elementos constituem fatores de diferenciação social. Num segundo momento, procuraremos caracterizar as casas do ponto de vista da tipologia, número de divisões, organização espacial interna e especialização funcional, por forma a reconstituir as utilizações das construções e a sua relação com a vida daqueles que a habitavam.

 

O presente artigo pretende sublinhar a diversidade de soluções ao nível da habitação urbana em Lisboa na segunda metade do século XVIII e inícios do século XIX e destacar o seu potencial papel enquanto mecanismo de diferenciação social, sublinhando a sua inegável dimensão cenográfica, de suporte de comunicação com o exterior, sinal de distinção social, económica e cultural. Para tal, abordaremos a casa urbana partindo de dois vetores de análise fundamentais: formas de propriedade e de habitação ou, por outras palavras, possuir e habitar. Com vista à prossecução deste objetivo propomo-nos analisar a habitação de um largo espectro social representado numa amostra constituída por 376 inventários de bens, dando particular ênfase às camadas intermédias, principal objeto do presente estudo.

 

 

Estado da arte

 

É sabido que o estudo da história da arquitetura lateralizou durante muito tempo o tema da habitação corrente, centrando-se nos edifícios de prestígio, que se destacam pela singularidade, volume e dimensão física e simbólica, negligenciando a casa corrente que retira a sua força, não do carácter excecional, mas da sua normalidade e repetição.

 

Nos últimos 30 anos esta tendência tem-se alterado, assistindo-se ao aparecimento de estudos que têm contribuído para avançar e aprofundar o conhecimento sobre esta temática.

 

Sem pretendermos esgotar o tema, importa sintetizar os principais contributos nesta matéria. Centrando a análise na cidade de Lisboa e cingindo-a ao período Moderno, salientamos o trabalho percursor de José-Augusto França que abordou a arquitetura da reconstrução pombalina nos seus aspetos urbanísticos, construtivo e de habitação corrente[2]. Merece igualmente destaque o trabalho de Hélder Carita que, em 1990, desenvolveu um amplo levantamento da arquitetura do Bairro Alto com início no século XVI, apresentando tipologias de plantas e alçados, materialidades e pormenores construtivos, caracterizando exaustivamente a estrutura urbana, o edificado e as práticas construtivas correntes[3].

 

Por outro lado, em 1992, Nuno Luís Madureira, com base numa amostra de inventários, procurou detetar padrões de especialização funcional nas habitações de diferentes grupos socioprofissionais. Com base na mesma fonte, este historiador debruçou-se também sobre o mobiliário que compunha os interiores domésticos em Lisboa nos finais do Antigo Regime[4].

 

Entretanto, em 1995, Teotónio Pereira e Irene Buarque traçam um panorama da evolução da habitação corrente plurifamiliar em Lisboa, sistematizando as principais soluções, atendendo ao tipo de construção, à época, bem como aos estratos da população a que se destinavam[5].

 

Os trabalhos desenvolvidos por Maria Helena Barreiros são de grande importância, atendendo a que a autora, no seu artigo “Casas em cima de casas”, dá um contributo para a compreensão da divisão espacial e especialização funcional nos prédios de rendimento e, mais recentemente, numa publicação da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa sobre o seu património edificado, apresenta uma caracterização dos prédios de rendimento entre o joanino e o tardopombalino[6].

 

Da maior relevância são também as dissertações de Ana Rita Valadas Gonçalves, Habitação plurifamiliar “não-pombalina” – casos de estudo em Lisboa entre os séculos XVII e XIX[7]; de Joana Matoso, A habitação corrente da época pré-industrial em Lisboa: o caso do Bairro da Madragoa[8]; de Maria Rocha Pinto, A habitação corrente de época pré-industrial em Lisboa: o caso do Bairro da Bica[9]; e de Ana Rosado, A habitação característica do Antigo Regime na encosta de Santana: tipologias e modos de habitar[10]. Nestas dissertações, desenvolvidas no âmbito do Mestrado Integrado em Arquitetura do Instituto Superior Técnico, sob orientação de João Vieira Caldas, as autoras procedem ao estudo do enquadramento, dos aspetos arquitetónicos, materiais e técnicas de construção de edifícios do século XVII e XVIII ainda existentes no espaço urbano lisboeta, procurando reconstituir fachadas, sistemas de circulação vertical, áreas, plantas, bem como a organização espacial e funcional dos fogos. Mais recentemente, num artigo conjunto, João Vieira Caldas, Maria Rocha Pinto e Ana Rosado dão um contributo para o conhecimento das características dos prédios de rendimento na primeira metade do século XVIII, dando particular relevo aos edifícios que compreendiam dois fogos por piso[11].

 

Por outro lado a obra História da vida privada em Portugal veio facultar uma visão global dos espaços da vida privada, das sociabilidades e das relações familiares[12]. Importa também destacar o projeto de investigação “A Casa Senhorial em Lisboa e no Rio de Janeiro (séculos XVII a XIX). Anatomia dos Interiores”, coordenado por Isabel Mendonça, no âmbito do qual se produziram vários estudos que, muito embora se tenham centrado nas habitações das camadas superiores da sociedade, representam um importante contributo para o conhecimento dos aspetos arquitetónicos e decorativos das casas senhoriais lisboetas entre os séculos XVII e XIX[13].

 

Quisemos também nós, num trabalho recente, dar um contributo para esta temática, através do desenvolvimento de uma abordagem que procurou conciliar uma análise arquitetónica dos edifícios com uma perspetiva histórica que ligasse as casas aos indivíduos que as habitaram. Foram analisados quatro imóveis com vista a obter uma imagem do seu valor monetário, da dimensão social e material da sua ocupação, dos aspetos morfológicos, espaciais, funcionais e construtivos dos edifícios, bem como da materialidade dos objetos que compunham o seu recheio. O denominador comum entre estes edifícios foi o facto de corresponderem a imóveis de habitação plurifamiliar e pertencerem às camadas populares, intermédias[14].

 

Todos estes trabalhos têm permitido trazer luz a um objeto de estudo durante muito tempo negligenciado. O conhecimento sobre os modelos habitacionais do Antigo Regime é hoje mais profundo e sistematizado e a sua relevância reconhecida. Hoje já não se duvida que a casa corrente urbana, desprovida de interesse artístico, bem como o seu interior constituem importantes objetos de estudo, configurando elementos chave para o conhecimento da vida e do quotidiano da população citadina.

 

Conhecer o quotidiano em contexto urbano passa por conhecer a estrutura e o pano de fundo da vivência quotidiana, isto é, o habitat, nomeadamente, as formas de propriedade e as tipologias mais comuns, a forma como os indivíduos e agregados organizam e moldam o espaço de acordo com as necessidades e a forma como este materializa distâncias sociais e económicas. É esse o móbil do presente artigo. Partindo da descrição das casas procuraremos identificar as tipologias de edifícios habitacionais característicos do período em análise, proceder à análise da compartimentação interna dos fogos e à sua caracterização funcional. O fim último de toda a análise consiste, como dissemos, em perceber o papel da casa enquanto mecanismo de diferenciação social.

 

 

Considerações metodológicas

 

Debruçar-nos-emos sobre a casa corrente urbana partindo dos inventários de bens e das descrições das casas neles incluídas. Refira-se que esta fonte documental se revelou de indiscutível interesse, abrindo possibilidades para um melhor e mais profundo conhecimento do quotidiano das camadas populares e intermédias e superiores, na medida em que permite unir dois polos essenciais de investigação, as pessoas e as suas casas.

 

Antes de avançarmos, importa referir que a maioria dos processos alvo de estudo são inventários orfanológicos, que se realizavam obrigatoriamente sempre que um defunto deixava, pelo menos, um filho menor. O processo decorria sob a supervisão do Juiz dos Órfãos. Convém, no entanto, ressalvar que a existência de filhos menores à data da morte de um dos pais não era a única condição legal que implicava a realização de inventário. Outras situações, como a presença de um ausente ou de um demente entre os herdeiros ou o facto do cônjuge sobrevivente voltar a casar, determinavam a obrigatoriedade deste mecanismo para efeitos de partilha de bens. No caso de os herdeiros serem maiores e do expediente resultar da vontade dos herdeiros, não se revestindo de carácter obrigatório e compulsivo, o processo decorria na dependência da Correição Cível.

 

 

 

A lei definia que o inventário deveria contemplar todos os bens móveis e de raiz, bem como todas as dívidas ativas e passivas[15]. Por esse motivo podemos afirmar que, de uma forma geral, os inventários de bens em Portugal facultam ao historiador uma imagem bastante completa do património de uma família no momento da morte do inventariado/a. Cada item era avaliado por louvados e o seu valor registado no inventário. Este procedimento amplia de forma significativa o potencial desta documentação enquanto fonte histórica, uma vez que faculta informação sobre o valor monetário dos diversos bens avaliados e permite ter uma noção do nível de fortuna e património global dos agregados[16].

 

Os inventários têm potencial enquanto ponto de partida para o estudo das formas de habitar e da habitação corrente em si, porque, não só são frequentemente descritas as dívidas e despesas com a habitação, como também são descritos todos os imóveis em relação aos quais os inventariados tinham algum direito ou relação de propriedade, incluindo aqueles em que habitavam.

 

Relativamente aos imóveis destinados à habitação, e no que diz respeito às tipologias, os louvados recorrem a um léxico genérico. Na maioria das vezes os avaliadores usam apenas a expressão “propriedade de casas” acrescida do adjetivo “térreas” ou, no caso das construções em altura, de uma descrição dos vários pavimentos. Existem, contudo, referências a barracas, quintas, casas nobres e o termo palácio é usado uma vez. A descrição centra-se sobretudo na localização do imóvel, no número de pisos e de fogos, na quantidade de divisões que compõe cada fogo, no regime de propriedade, rendimento e, se for o caso, o valor da pensão de foro e a proporção do laudémio. Os louvados referem ainda a existência de outros elementos passíveis de valorizarem a casa, tais como a presença de quintal, poço ou anexos. Em suma, podemos afirmar que a descrição é bastante completa, centrando-se nos elementos que poderiam condicionar e influenciar a determinação do seu valor pelos louvados. Em alguns casos fornecem as confrontações e referem se era, ou não, ocupado pelo inventariante. Não existem referências a medições e as alusões aos materiais de construção e técnicas utilizadas, assim como às funções das divisões são breves e esparsas. Apesar das limitações da fonte, todos os dados foram coligidos e serão utilizados para traçar um panorama da habitação dos indivíduos que constituem a amostra.

 

O ponto de partida da investigação foram inventários de bens de indivíduos que residiram no espaço urbano lisboeta entre 1755 e 1836 e em relação aos quais foi possível identificar a ocupação socioprofissional e/ou estatuto. A amostra é constituída por 376 processos. Como o inventário nos faculta uma imagem do património e fortuna dos indivíduos conseguimos também ter uma noção global da sua posição na hierarquia social e económica.

           

            Do ponto de vista económico, a transição do século XVIII para o século XIX ficou marcada pelo aumento dos preços que conduziu à redução dos salários reais e, por conseguinte, ao aumento do custo de vida[17]. Como o período em análise é marcado por esta conjuntura e por forma a tornar procedente a comparação dos valores do nível de fortuna dos indivíduos, e a análise do valor das rendas e das casas consequente, procedemos à deflação dos valores nominais em valores reais, indexando-os ao ano de 1750[18].

 

Os inventários foram agrupados em seis categorias de acordo com o nível de fortuna estimado, tendo em conta o somatório do valor de todos os bens descritos no inventário. O Quadro 1 representa as categorias a serem consideradas, doravante designadas pelas letras A, B, C, D e E. Cada letra corresponde a um nível de fortuna diferente, com exceção da letra E que corresponde a um conjunto de indivíduos cujo estatuto social claramente se diferencia dos demais.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Quadro 1- Composição socioeconómica da amostra

 

Categorias socioeconómicas

 

A

 

 

< 400.000

réis

 

B

 

400.000 -

2.000.000

réis

C

 

2.000.000 – 8.000.000

réis

D

 

> 8.000.000 réis

 

 

E

 

Fidalgos e altos dignitários

Total

 

 

Agricultores/

Pescadores

N.º

2

1

 

 

 

3

%

67

33

 

 

 

100

Criados

N.º

4

6

 

 

 

10

 

%

40

60

 

 

 

100

Proprietários

N.º

3

 1

1

 

 

5

 

%

60

20

20

 

 

100

Transportes

N.º

7

7

3

 

 

18

 

%

39

38,5

22,5

 

 

100

Artesãos

N.º

35

37

18

9

 

99

 

%

35

37

18

9

 

100

Exército

N.º

1

8

3

2

 

9

23

 

%

4

35

13

9

 

40

100

Profissões liberais

N.º

3

18

6

2

 

13

42

%

7

42

14

5

 

31

100

Administração

N.º

11

11

13

5

 

1

40

 

%

27,5

27,5

32,5

10

 

2,5

100

Comércio

N.º

17

41

42

35

 

135

 

%

13

31

32

26

 

100

Nobres

N.º

 

 

 

1

 

1

 

%

 

 

 

100

 

100

Total

N.º

83

130

87

53

 

23

376

 

100

100

100

100

100

 

100

100

 

 

Para se ter uma noção do significado dos níveis de fortuna é importante sublinhar que os contemporâneos consideravam pobre uma pessoa com um nível de fortuna em torno de 400.000 réis, enquanto um indivíduo com um património estimado em cerca de 2.000.000 réis era considerado rico[19]. Assim, a categoria A corresponde à camada mais desfavorecida economicamente. Por outro lado, a categoria E foi criada para integrar indivíduos pertencentes à alta nobreza, isto é, fidalgos e altos dignitários. Assim, as categorias B, C, D são consideradas grupos intermédios e constituem o nosso foco de análise. Por outras palavras, os grupos intermédios correspondem, no âmbito do presente estudo, a um grupo amplo e heterogéneo que inclui todos os indivíduos que vivem acima da linha de pobreza e não integram as camadas superiores da nobreza. As camadas A e E não são consideradas grupos intermédios. Elas desempenham um papel diferente no presente estudo. Apesar de não constituírem o nosso grupo alvo, revestem-se de grande importância para detetar e compreender eventuais diferenças entre os grupos.

 

            O Quadro 1 representa a composição socioeconómica da amostra, mostrando a distribuição dos indivíduos das diferentes categorias socioprofissionais pelas diversas classes de riqueza. A partir do quadro é possível captar correspondências estatisticamente significativas entre a hierarquia da riqueza e a ocupação social. O quadro permite identificar as categorias socioprofissionais mais frequentemente associadas a baixos níveis de riqueza, como os agricultores e pescadores, os criados, os proprietários, os trabalhadores relacionados com os transportes e os artesãos. Por outro lado, os dados põem em evidência a grande heterogeneidade dos níveis de riqueza nas profissões liberais, nos indivíduos ligados à administração, nos membros do exército e comerciantes.

 

            Sem querer alongar esta análise, importa sublinhar a forte presença do sector do artesanato e do comércio, o que está em consonância com a estrutura social e económica de Lisboa no período em análise. O quadro mostra também que os altos dignitários estão sobretudo associados às profissões liberais, à administração e ao exército.

 

 

Tipo de propriedade e formas de habitar e a relação com o espaço

 

Sílvio Conde refere que o étimo latino de habitar, habito, é um frequentativo de habeo que, segundo o autor, “denota “ter, possuir, ser, estar senhor de, conter, encerrar, abranger, exibir”, habitual e repetidamente”[20]. Sintomático da enorme riqueza semântica da expressão é o facto de esta ser passível de ser aplicada a uma multiplicidade de formas de morar, que passam por diferentes tipos de propriedade e formas de relação com o espaço. Atentemos às formas de habitar que conseguimos identificar na análise da fonte.

 

Como veremos em seguida, uma das formas mais comuns de habitar consiste em viver numa casa arrendada. É sabido que o arrendamento nos remete para a cedência do usufruto de um imóvel por um período de tempo curto, normalmente anual. Neste caso, os indivíduos não são donos efetivos do espaço que ocupam, mas têm pleno usufruto do mesmo; gozam de total liberdade na gestão do espaço, decidem sobre as suas funções, dispõem sobre a sua organização e programa decorativo.

 

 Outra das formas de propriedade bastante disseminada consiste em possuir casa própria o que, no caso da propriedade livre, passa por ter o domínio pleno sobre o bem e, no caso dos aforamentos e emprazamentos, por deter o domínio útil sobre o mesmo.

 

No entanto, nem sempre habitar implica possuir ou ter alguma espécie de vínculo jurídico em relação ao espaço de residência. Vejamos o caso da coabitação. O maior constrangimento neste caso consiste na privação da capacidade de decidir sobre o espaço no qual se habita. O indivíduo pode adquirir objetos, mas não tem a capacidade de os dispor livremente no interior doméstico, porque está confinado a um espaço sobre o qual a capacidade de decisão ou intervenção é, em princípio, reduzida ou nula.

 

Antónia Joaquina, por exemplo, que, quando faleceu, em 1824, se achava divorciada de Gregório de Castro, cozinheiro, possuía um imóvel para habitação na freguesia de Santa Engrácia mas, segundo consta do inventário, morava no Largo do Chafariz de Dentro com a sua irmã, Maria do Rosário e seu cunhado, Francisco Pereira de Melo[21].

 

Muitos indivíduos, como os criados, viviam sob o teto de outra pessoa. É esse o caso de Ana Joaquina de Abreu, governanta de Gaspar Lourenço Perdigão, que vivia na casa do seu patrão no Arco do Cego[22]; de António José, criado, que se depreende morar em casa do Porteiro-mor, onde terá falecido “nas ruínas do terramoto”[23]; e de António Rodrigues Bicho, cozinheiro, que morava na freguesia de Santa Isabel, nas “casas de morada do Armeiro-mor”[24]. A maioria viveria confinada a um quarto. Outros não teriam qualquer espaço reservado para si, dormindo, por exemplo, na cozinha. A sua sorte e as suas condições dependeriam em grande medida da função desempenhada no agregado e da própria condição social e económica do empregador. De qualquer forma, é sabido que, muitas vezes, numa casa com mais de um andar os aposentos para os criados situar-se-iam no rés do chão, sublinhando através do espaço a diferença entre servido e servidor.

 

Na casa de António Gonçalves Branco, comerciante de carvão[25], falecido em 1818, essa separação é clara. A propriedade, sita na freguesia de Nossa Senhora da Pena, constava de rés do chão, dois andares e águas-furtadas e era ocupada na totalidade pelo falecido. O piso térreo contava com três divisões, “servindo de cocheira, cavalharice e palheiro, tendo em parte seu sotão" e com a entrada da escada de acesso aos andares, onde tinha dois compartimentos, um dos quais “para criado”[26].

 

Mas a coabitação não era uma forma de habitação específica das camadas menos favorecidas. Segundo se depreende do inventário, em 1796, Dona Joana Cabral da Cunha Godolfim Laroca, Dona da Câmara da Rainha, viúva e inventariante de António da Cunha Sousa Pereira Teles, escrivão da Chancelaria da Casa da Suplicação, por exemplo, vivia no palácio da Rainha em Queluz. Nesta família, fica bem claro que num mesmo agregado, poderiam coexistir diferentes formas de habitar. A inventariante e as suas filhas, Dona Maria da Penha de França, de 18 anos, Dona Hermínia José, de 16 anos e Dona Maria do Carmo, de 14 anos, viviam no Paço. O filho mais velho, Luís da Cunha Sousa de Vasconcelos, de 18 anos, era estudante na Universidade de Coimbra. O inventariado, por sua vez, ao que tudo indica, vivia num quarto arrendado[27]. É o que se pode apurar a partir do inventário, no qual não só a viúva requer que se proceda ao leilão dos bens, por forma a evitar pagar a renda das casas que os referidos bens ocupam, como também se declara que o falecido devia 96.000 réis da renda anual de um “quarto grande” e 20.000 réis de um outro quarto “das casas que ocupou”.[28]

 

Há ainda a considerar que em alguns casos, alguns membros da família, incluindo um dos cônjuges,, viviam em instituições. É o caso, por exemplo, de Dona Caetana Luísa Xavier da Silva, viúva de António Peixoto de Almeida e Silva, Cavaleiro da Ordem de Cristo[29] que, na data do falecimento do seu marido, se achava recolhida no Recolhimento de Rilhafoles de onde saíra “para as casas […] onde se achava a coherdeira sua filha Dona Teodora Herculana Peixoto de Almeida que vivia nas mesmas casas em companhia do dito pai”[30].

 

 

Formas de habitar dominantes

 

Com vista à prossecução do primeiro objetivo – determinar as formas de habitar dominantes – procedemos à análise das dívidas passivas e despesas, procurando recolher informações relativas a débitos ou pagamentos referentes a rendas de casas. Nos bens de raiz perscrutámos entre as propriedades elencadas se alguma seria ocupada pelo agregado.

 

É importante referir que, sempre que os louvados ao descreverem as casas referem que os imóveis eram ocupados, no todo ou em parte, pelo inventariado ou inventariante, a nossa tarefa é facilitada. No entanto, o facto de os louvados não aludirem à ocupação do imóvel por parte do inventariado ou inventariante, não significa que os seus proprietários não residissem nele. Senão vejamos: no testamento de António Alves, contratador de carvão, este refere-se especificamente à casa em que vivia, sita em Penabuquel, freguesia de Santo Estevão de Alfama[31]. No entanto, aquando da descrição desta casa para efeitos de avaliação, os louvados não referem que o inventariado era aí morador. Este e outros exemplos semelhantes legitimam a metodologia adotada que passou pelo cruzamento da informação relativa à morada do inventariado com a localização das casas facultada na descrição dos louvados. Assim, sempre que a localização de uma habitação coincidiu com a morada do seu proprietário e, por outro lado, não havia no seu rol de dívidas passivas e despesas, débitos decorrentes de locação de casas, assumimos que esta era ocupada pelo seu proprietário, muito embora, nestes casos, não saibamos se a ocupava total ou parcialmente.

 

Para efeitos de análise, nos casos em que, como vimos, se verifica a coexistência de múltiplas formas de propriedade e de habitar, optámos como critério considerar somente a forma de habitação de um dos elementos do casal, o inventariado. Por outro lado, esta, como qualquer outra, abordagem aos tipos de propriedade levanta problemas terminológicos que importa clarificar. É sabido que as palavras “prazo” ou “emprazamento” se referem a contratos em que o proprietário de um bem cede o domínio útil de um determinado bem a outrem, a título temporário e definido em vidas e as designações “dar de foro” ou “aforamento” são usadas nos tipos de contrato em que a alienação do usufruto se faz a título perpétuo[32]. No entanto, no caso vertente, verificámos que os louvados usam quase sempre a expressão “prazo”, especificando depois, em alguns casos, tratar-se de um prazo fateusim ou em vidas, o que põe em evidência a variabilidade e ausência de uniformidade no uso desta terminologia no espaço e no tempo[33].

 

Nos inventários analisados o regime contratual é referido na maioria dos casos, verificando-se, como veremos, um claro predomínio do aforamento e emprazamento sobre a propriedade plena. No entanto, diga-se, a duração do “prazo” nem sempre é mencionada. Em todos os grupos, a percentagem de indivíduos para os quais não conseguimos aferir a sua forma de habitar é elevada. Ainda assim, foi possível determinar a forma de habitar de 223 indivíduos, o que corresponde a 59% da amostra.

 

Gráfico 1 - Frequência dos tipos de propriedade e formas de habitar nas diferentes categorias socioeconómicas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: 223 inventários de bens

 

Acreditámos que a maioria dos casos em que não há referência expressa nem qualquer indício relativamente à forma de habitar corresponde a situações de coabitação ou arrendamento. No primeiro caso porque esta forma de habitar não dava origem a uma dívida, no segundo porque o registo das dívidas passivas poderia não ser exaustivo ao ponto de discriminar com rigor o seu motivo, o que impede a identificação da forma de habitar em causa.

        

         A omissão pode também decorrer do enquadramento legal, se as casas em que os indivíduos habitavam correspondessem a prazos em vidas ou morgados, considerados indivisíveis por natureza, podendo passar precípuos, ou seja, serem dados em vidas dos pais além da legítima e, por conseguinte, em alguns casos, omitidos na descrição dos bens[34]. É preciso ter em conta que, por um lado, a lei definia para este tipo de bens um regime diferenciado, permitindo que, em alguns casos, não fossem avaliados, nem entrassem na partilha dos bens; por outro, o inventário não nos fornece o património real da família, mas a parte legalmente sujeita a partilhas[35]. No entanto, acreditamos que não serão muitos os casos em que este tipo de bens não se declarou, uma vez que o direito orfanológico recomendava que fossem objeto de descrição e louvação todos os bens que, pela sua natureza, não pudessem ser objeto de partilha, incluindo os vínculos e os prazos. De outra forma não seria possível calcular o rendimento de semelhantes bens para tomar contas aos tutores ou curadores a quem fosse confiada a administração dos bens[36]. Era também considerado partível o preço pelo qual os prazos se haviam comprado, se este não tivesse sido conferido no inventário do comprador[37]. Da mesma forma se recomendava que se louvassem, para entrarem na partilha, as benfeitorias realizadas em bens desta natureza na constância do matrimónio dos pais[38]. Do levantamento que fizemos e do confronto com os testamentos dos inventariados onde, muitas vezes, os testadores aludem ao seu património, concluímos que a referência a prazos em vidas e/ou vínculos é reduzida, representando uma pequena percentagem da totalidade da amostra. Os vínculos, além de diminutos, estão circunscritos a determinados segmentos sociais.

 

Assim, tendo em conta as exceções à não obrigatoriedade do registo, acreditámos que havendo um prazo em vidas na família transmitido de pais para filhos, seria provável a sua referência no testamento ou no inventário, seja pela avaliação de benfeitorias, seja pela louvação dos seus rendimentos. Por este motivo, como dissemos, acreditámos que a maioria dos casos omissos corresponderá a indivíduos ou agregados que habitavam em casas de outrem ou em casas arrendadas e, nas camadas mais altas, em casas que integravam bens vinculados.

 

Voltemos ao Gráfico 1. Olhando agora apenas para os casos para os quais foi possível identificar o tipo de propriedade e forma de habitar é possível retirar outras conclusões. Em primeiro lugar, o gráfico põe em evidência que as diferenças entre os grupos não são muito expressivas. Em todas as camadas os regimes de propriedade dominantes foram o arrendamento e o usufruto do domínio útil. Tendo em conta o que referimos acerca dos casos para os quais não foi possível identificar o tipo de propriedade, é de admitir que estes dois regimes estão, ainda assim, sub-representados. Com exceção do grupo A, o domínio útil é uma forma de propriedade com forte peso, sendo igualmente significativo que a propriedade livre, excluída no grupo A, aumenta em função do poder económico, representando uma maior proporção nas camadas com estatuto e nível de riqueza superior (D e E). Não deixa de ser surpreendente a opção pelo arrendamento mesmo nas camadas com maior poder económico. Arrendar não parece desqualificar. Prova disso é a opção de muitos indivíduos que, sendo proprietários de uma ou mais moradias, escolhem ser inquilinos e viver numa casa arrendada, eventualmente mais compatível com o seu estatuto ou melhor localizada. Claro que esta opção pode também ter sido ditada por critérios económicos. Tratar-se-ia, muitas vezes, de uma estratégia de poupança e de gestão de uma fonte de rendimento.

 

Vejamos um exemplo. António Alves da Silva, com loja de funileiro, era proprietário de três imóveis destinados a habitação: o primeiro situado na freguesia de São Miguel de Alfama, constava “de loja e sobrado” e foi avaliado em 55.000 réis; o segundo, na freguesia de Nossa Senhora da Pena, composto por um plano de loja, primeiro andar, pátio e vários despejos, foi avaliado em 560.000 réis e o terceiro, situado na freguesia da Lapa, constituído por um plano de lojas, vários despejos e um pátio, primeiro e segundo andar e por cima uma água-furtada, foi estimado em 1.500.000 réis[39]. Apesar de proprietário de três imóveis destinados a habitação, António Alves da Silva opta por viver na Rua Direita do Arsenal Real da Marinha numa casa arrendada, pois sabemos que, em 1816, data de realização do inventário, era devedor da quantia 59.700 réis relativa à renda da casa e loja que ocupara. António Alves da Silva não constitui um caso isolado. Encontrámos pelo menos 14 agregados a fazerem a mesma opção.

 

Ter casas e morar em casa arrendada, comprar um imóvel de habitação para locação em vez de o usar como casa própria para moradia da família não é um fenómeno específico de Lisboa. Partindo de uma amostra constituída por 2.113 inventários realizados em Paris entre 1600 e 1790 que indicavam o tipo de vínculo que unia os inventariados às suas casas, Annik Pardailhé-Galabrun conclui que apenas 14% eram proprietários. O arrendamento era inequivocamente a situação mais comum, correspondendo a 77% da amostra. De facto, como refere a autora, “[u]nlike modern day France, where everyone, city and country dwellers alike, aspire to own his home, Parisians in the seventeenth and eighteenth centuries were not averse to renting. Even wealthy families whose riches included houses in the capital or the outlying suburbs, were often mere tenants of their main residence.[40] De acordo com a autora os locatários pertenciam a todas as classes socioprofissionais. Tal como em Lisboa, em Paris muitas famílias ricas, detentoras de uma ou mais casas (por via de compra ou herança), em vez de optarem por residir numa delas, preferiam habitar numa casa arrendada.

 

Numa análise que incidiu sobre a cidade de São Paulo, Maria Luiza Ferreira de Oliveira chega à mesma conclusão. Segundo a autora, na segunda metade do século XIX, a ideia de ter casa própria não era ainda tónica dominante. Ser locatário não era um problema em si. Muitos optavam por morar num imóvel arrendado, mesmo quando eram proprietários de casas[41].

 

 

Valor das casas e das rendas

 

Atentemos agora ao valor das casas e das rendas. No que concerne ao primeiro aspeto, como os próprios avaliadores registam, para apurar o valor de uma casa poderiam contribuir vários fatores, como o estado, localização, regime de propriedade, rendimento, pensão de foro e materiais de construção. Não sabemos o peso que cada um destes fatores tinha na determinação do valor de cada habitação avaliada, mas sabemos que os quatro primeiros são os mais frequentemente referenciados nas descrições dos louvados. Ponderados todos os elementos, os avaliadores chegavam a um valor que, diga-se, não parece distanciar-se muito do valor de mercado. De facto, partindo da análise de alguns imóveis, que depois de avaliados foram leiloados, concluímos que, embora surja um caso em que o imóvel foi vendido pelo mesmo valor da avaliação, na maioria dos casos, estes foram arrematados por um valor ligeiramente superior. Apenas num dos casos o imóvel foi licitado por um valor muito superior ao da avaliação.

 

As casas à frente da Rua da Mãe de Água, de que era proprietário Alberto Magno Vieira de Faria, avaliadas, “em atenção ao sitio, estado de grande ruina e sua má construção”, em 750.000 réis, foram arrematadas por 756.000 réis[42]. O mesmo acontece com várias casas de António José de Macedo. Uma destas, sita na Rua Direita do Paraíso, avaliada em 750.000 réis, foi licitada por 767.000 réis[43]. A segunda, sita na freguesia de São Martinho, avaliada em 2.300.000 réis, foi arrematada por 2.600.000 réis[44]. Apenas a terceira, sita na freguesia de Nossa Senhora da Pena, avaliada em 1.950.000 réis, foi adjudicada em leilão por um valor bastante superior (3.055.000 réis)[45].

 

Assim, concluímos que, embora os louvados tendam para a subavaliação, o valor de louvação dos imóveis tende a ser próximo do valor de mercado, pelo que, na nossa perspetiva, os valores aí expressos possam ser usados como indicadores do valor das casas habitadas pelos agregados em estudo. Há, aliás, indícios de que no caso de os herdeiros considerarem excessiva a avaliação de um bem de raiz poderem, de comum acordo, propor que este fosse revisto. Pelo menos é isso que deduzimos do processo de inventário de António Antunes Lima, no qual se refere que todos os herdeiros concordaram que o preço pelo qual foi avaliado um prazo era excessivo, tendo proposto que se abatessem 300.000 réis ao valor da avaliação[46].

 

Tendo presentes estes dados, atentemos ao Quadro 2 que representa o valor médio de avaliação das casas e o peso relativo que representam na fortuna dos diferentes grupos considerados.

 

Quadro 2 - Valor médio da avaliação das casas e percentagem média que representam no património dos grupos socioprofissionais

 

Valor médio (réis)

Mediana (réis)

Peso da casa no património familiar

(%)

Categoria

N.º de

Casos

Nominal

Deflacionado 1750=100

Nominal

Deflacionado 1750=100

A

13

199 662

111 900

200 000

124 031

56

B

22

500 000

321 877

425 000

322 034

49

C

40

1 210 875

696 081

1 000 000

591 062

36

D

30

2 804 120

1 639 302

1 706 800

1 328 098

16

E

7

8 423 371

4 346 044

8 200 000

4 457 143

27

 

 

Da sua análise concluímos que o valor médio das casas onde habitam os inventariados aumenta em função do património dos seus proprietários. Outro dado importante é o de que à medida que aumenta o nível de fortuna dos agregados, diminui o peso relativo que a casa tem no seu património. O quadro ilustra bem o forte peso que o imóvel destinado à habitação representa na composição da riqueza dos grupos A e B. Nos grupos C, D, e E, a casa corresponde a entre 16 e 36% do património, ao passo que nos grupos A e B, representa 49 a 56%.

 

No entanto, é preciso ter em conta que este valor traduz o valor total do imóvel mas, na esmagadora maioria dos casos, o agregado apenas ocupava uma parte. É que, neste contexto urbano em particular, as casas eram muito mais do que locais de abrigo. Elas constituíam uma fonte de rendimento importante, na medida em que eram passíveis de serem arrendadas.

 

A propriedade imobiliária para locação parece disseminada como forma de investimento, oferecendo, tudo indica, taxas de retorno bastante atrativas. É significativo que uma percentagem expressiva de indivíduos possuía uma ou mais moradias para habitação própria e/ou locação que, nuns casos assegurava, noutros complementava a renda da família. Em alguns casos, como vimos, os indivíduos, apesar de possuírem um imóvel para habitação, optam por viver em casa arrendada.

 

No entanto, em muitos agregados não podemos falar de uma escolha ou de uma estratégia de investimento definida pelos indivíduos em estudo, uma vez que os imóveis descritos podem corresponder à expressão de uma opção de investimento mais global, traçada no âmbito da família num sentido alargado, que inclui os antepassados imediatos (ou não), já que, muitas vezes, estes imóveis não resultam da compra. Eles integram o património dos agregados por via da herança ou doação a um dos elementos do casal.

 

Atentemos agora à média e mediana do valor despendido anualmente na renda por cada uma das camadas socioeconómicas que, como seria expectável, são também bastante díspares (Cf. Quadro 3).

 

 

Quadro 3 - Valor despendido na renda da casa

 

Valor médio (réis)

Mediana (réis)

Categoria

N.º de

casos

Nominal

Deflacionado 1750=100

Nominal

Deflacionado 1750=100

A

20

35 130

17 873

26 400

15 250

B

9

66 133

37 220

48 000

20 426

C

30

72 860

39 951

58 800

40 870

D

13

121 231

68 537

86 400

54 033

E

5

128 640

66 824

96 000

69 565

 

 

É claro que a disparidade de valores traduz diferenças na localização, características individuais e específicas dos edifícios que poderiam alterar, e muito, o valor da renda[47]. No entanto, as diferenças não deixam de espelhar uma atitude de valorização e investimento no habitat por parte dos grupos mais favorecidos do ponto de vista socioeconómico.

 

 

O negócio das casas

 

E seriam as casas um bom investimento? Adquirir o domínio de um imóvel para habitação, habitá-lo e arrendá-lo era um negócio rentável? Para responder a esta questão desenvolvemos um esforço que, apesar de teórico, tem a vantagem de facultar uma perceção do potencial de rendimento dos imóveis destinados a habitação. Para tal, partimos da análise de imóveis para os quais dispomos de três elementos fundamentais: valor de estimação do ativo, valor do foro ou pensões e estimativa do seu rendimento anual. Dizemos que o exercício é teórico porque, em rigor, não é líquido que os indivíduos tenham despendido montantes similares aos da avaliação para adquirir o imóvel. Não é tão pouco verosímil que este tenha sido adquirido, já que, como vimos, este pode ter sido herdado ou doado.

 

Ainda assim se partirmos do pressuposto, que parece crível, de que o valor de compra do imóvel se situa próximo do valor da avaliação, tomarmos esse valor como referencial de um hipotético valor de investimento, e apurarmos o rendimento líquido aproximado – subtraindo os foros ou pensões ao valor das rendas cobradas pelo proprietário estimado pelos avaliadores[48] –, conseguimos ter uma noção da rentabilidade e do retorno que esse investimento oferece[49]. Da sua análise concluímos que apenas 2,4% dos imóveis garantia taxas de retorno inferiores a 5%. A esmagadora maioria (58,5%) permitia taxas iguais ou superiores a 5%, e 28% uma taxa igual ou superior a 10%. Importa referir que o juro máximo legal era então de 5%. À luz destes valores, podemos afirmar que a compra de um imóvel destinado a habitação, para o próprio e/ou para terceiros, seria, na maior parte dos casos, um negócio bastante rentável, superior ao juro máximo legal. Se invertermos a relação (investimento/lucro líquido) conseguimos uma imagem do tempo necessário para reaver o capital investido que, na maioria dos casos, se situa entre os 11 e os 14 anos.

 

Seria este fenómeno específico do espaço geográfico e temporal em estudo? Acreditámos que o fenómeno se deva em grande medida ao facto de se tratar de um contexto urbano muito particular de forte imigração onde, por outro lado, o terramoto terá devastado um conjunto significativo de habitações que apenas lentamente se vão repondo[50]. O desencontro entre a procura e a oferta de habitação terá sido uma realidade que fez com que o valor das rendas se mantivesse elevado. No caso do aforamento e até, em certa medida, do emprazamento, esta elevada taxa de rentabilidade decorre em parte do desfasamento entre o ritmo de atualização do valor do foro pago pelo enfiteuta e o valor das rendas cobradas aos inquilinos que, por força da própria duração do contrato, eram passíveis de ser frequentemente revistas e atualizadas.

 

A aquisição de um imóvel para habitação era, tudo indica, um investimento apelativo que, muitas das vezes implicava o recurso ao crédito. Por outro lado, possuir uma casa, como de resto qualquer outro imóvel, constituía uma mais-valia no mercado do crédito, já que muitas vezes o próprio bem ou os seus rendimentos serviam de garantia hipotecária para a contração de dívidas. Esta prática está documentada. Alexandre José Maltês, por exemplo, declara no testamento ser

 

            “devedor a Manuel de Aparício da quantia de cem mil reis resto de duzentos mil réis que me emprestou à razão de juro de cinco por cento ao ano como constara de uma escritura pública que tem em seu poder, e juntamente lhe entreguei em penhor e caução os títulos das minhas casas que possuo na Rua da Palmeira da freguesia de Nossa Senhora das Mercês que são as mesmas em que vivo e as hipotequei á mesma divida”[51].

 

 

Em suma, a posse de um imóvel para habitação podia representar para muitas famílias uma possibilidade de sobrevivência, para outras, a obtenção de uma renda e do alcance de uma certa estabilidade e segurança financeira. Mas, como é óbvio, um imóvel para habitação não representava apenas garantia e segurança. A sua posse acarretava também encargos e trabalhos (gastos com vista à manutenção, reforma ou acrescento do imóvel, pagamento de impostos, cobrança das rendas, etc.). Por esse motivo, não constitui motivo de surpresa a referência a despesas e até à contração de dívidas “para conserto de casas”.

 

 

Tipologias

 

Relativamente à tipologia, consideramos as seguintes categorias:

 

a)      Barraca;

b)      Casa térrea unifamiliar;

c)      Casa térrea plurifamiliar;

d)     Edifício com vários andares unifamiliar;

e)      Edifício com vários andares plurifamiliar;

f)       Palácio ou casa nobre;

g)      Quinta.

 

 

Note-se que o que norteia esta divisão são, por um lado, as características físicas e arquitetónicas dos edifícios e, por outro, a forma como os indivíduos e agregados os habitavam, nomeadamente, se os ocupavam total ou parcialmente. Assim, algumas destas categorias não requerem uma tipologia arquitetónica específica, já que um mesmo edifício pode dar origem a formas de habitar distintas, como é o caso da casa térrea e do edifício com vários andares, que pode ser uni ou plurifamiliar, se o mesmo integrar um ou mais fogos. É que, o nosso ponto de partida não é o edifício em si, mas o indivíduo e a forma como o seu agregado o ocupa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Gráfico 2 - Frequência das tipologias em função das categorias socioeconómicas

 

Fonte: 109 inventários de bens

 

 

Antes de avançarmos importa referir que esta análise se centra na habitação urbana o que, desde logo, nos obrigou a uma opção metodológica que importa clarificar. Alguns indivíduos, em particular nas mais camadas económica e socialmente favorecidas, muitas vezes ocupavam mais do que uma habitação. É frequente, por exemplo, residir numa habitação (alugada ou sob a qual se tem outro tipo de vínculo) na cidade e numa quinta, situada numa zona rural mais ou menos distante. Por forma a não enviesar a análise, e tendo presente o objeto central deste estudo, considerámos apenas a habitação urbana.

 

As diferenças ao nível das tipologias parecem ser bem maiores do que as diferenças ao nível do tipo de propriedade que os indivíduos têm sobre a sua moradia. De facto, quando analisámos o quadro, facilmente depreendemos o forte predomínio de determinadas tipologias em algumas camadas. É o caso da barraca que apenas aparece como moradia das camadas A e B, e da casa térrea (uni e plurifamiliar) que constitui opção de moradia somente nas categorias A, B e C[52]. A notória desproporção entre casas térreas e com andares põe em evidência o carácter marcadamente vertical da cidade de Lisboa, sublinhado já por vários autores.

Por outro lado, como seria de esperar, num contexto urbano como Lisboa a casa com andares plurifamiliar é hegemónica, representando a opção dominante em quase todos os grupos. Este aspeto foi já sublinhado por Nuno Teotónio Pereira e Irene Buarque. Segundo estes autores as formas de habitação plurifamiliar tiveram grande importância na cidade de Lisboa nas sucessivas fases do seu crescimento, em particular a partir da reconstrução pombalina[53]. De facto, a situação mais comum é os edifícios de habitação dos agregados em estudo conterem fogos arrendados a outros indivíduos. Apenas uma pequena parte dos indivíduos da amostra contava com a totalidade de um edifício para si e para o seu agregado[54]. Esta opção que passa por habitar uma casa com andares unifamiliar, uma quinta, um palácio e, em alguns casos, uma casa nobre é mais notória nas camadas com maior estatuto e poder económico (B, C, D e E).

 

 

Número de andares

 

No que diz respeito ao número de andares das moradias, é importante referir que consideramos andar cada um dos pisos ou pavimentos que compõem o edifício. Assim, foram considerados para efeitos de contabilização os pisos subterrâneos, o piso térreo, as sobrelojas, os andares propriamente ditos e as águas-furtadas.

 

 

Gráfico 3 - Frequência do número de andares das habitações

 

Fonte: 108 inventários de bens

 

 

O Gráfico 3 representa a frequência do número de andares que compõem a habitação dos diferentes grupos e permite constatar que as camadas mais pobres tendem a viver em casas com menos andares do que as camadas mais ricas. As moradias com um ou dois andares são dominantes na camada A e B e residuais nas camadas C, D e E. Estas categorias ocupam casas mais caras, preferencialmente ocupadas apenas pela sua família, e num edifício alto. A verticalidade da casa parece constituir assim uma espécie de código que consubstancia diferenças de ordem social e económica.

 

 

Número de divisões e especialização funcional

 

            O que é que sabemos acerca do tamanho das casas? Embora não facultem informações sobre a área útil, os inventários podem ser uma fonte importante quando se pretende ter uma ideia acerca do número de divisões que compõem as casas lisboetas no período em análise[55].

 

Apesar desta análise se centrar em apenas 70 casos, os únicos para os quais foi possível obter informação sobre este aspecto, verificámos que as diferenças entre os grupos são muito expressivas e que o assunto merece ser escalpelizado.

 

Depois de classificarmos as habitações com uma a duas divisões, três a quatro, cinco a sete, oito a dez, onze a quinze e mais de quinze compartimentos, procedemos à análise da sua frequência nos diferentes grupos, materializada no Gráfico 4.

 

Gráfico 4 - Frequência do número de divisões das habitações

 

Fonte: 70 Inventários Orfanológicos

 

 

O Gráfico 4 mostra que a diferença ao nível do número de divisões das habitações entre os grupos é muito significativa. Senão veja-se, a maioria (60%) dos agregados da camada mais desfavorecida (A) e cerca de 40% na B reside numa moradia cujo número de divisões é igual ou inferior a quatro. Moradias com cinco a sete divisões são também a opção de muitos dos indivíduos do grupo A, B, C e D. Habitações com oito a dez, 11 a 15 e mais de 15 divisões são dominantes nas camadas D e E, sendo mesmo a opção da esmagadora maioria dos membros deste último grupo.

O gráfico põe em evidência que, por comparação com o período medieval, em relação ao qual os estudos sobre a casa urbana corrente têm permitido concluir que esta se caracterizava por uma estrutura simples e pelo reduzido número de divisões[56], no período em análise verificámos que esta se complexifica, traduzindo um processo de relativa especialização. De facto, as plantas, quase sempre retangulares, organizavam-se na maioria das vezes, pelo menos em três áreas que corresponderiam provavelmente a uma “casa de fora”, normalmente junto à fachada, uma alcova interior ou a tardoz e uma cozinha a tardoz.

 

A análise dos inventários e, muitas vezes, da documentação anexa permitiu obter algumas informações sobre as funções das divisões em habitações com dois, três e quatro compartimentos. O documento de sequestro do imóvel situado na Rua do Passadiço pertencente a Dona Ana Joaquina Teles de Almada, viúva do Doutor Vítor Mendes de Carvalho e Oliveira, por exemplo, revelou-se fundamental para o conhecimento das funções das divisões em fogos de reduzida dimensão. Através dele ficamos a saber que, em 1835, o fogo da esquerda do referido imóvel constava de “caza de fora, alcova, e cozinha; e hum quarto piqueno”, o da direita de “caza de fora, alcova e cozinha, e huma cazinha de ladrilho aRuinada”, uma das lojas era constituída por “caza de fora, alcova, e cozinha”; outra por “caza de fora, e huma cazinha piquena”; e uma terceira por “caza de fora e alcova”[57]. Localizada no Campo de Santa Clara, a barraca de António Rodrigues, mestre alfaiate, falecido em 1758, constava de três “cazinhas” e era constituída por “casa de fora, camara e cozinha” e, por cima destas, um sótão[58]. Embora localizada no termo da Vila de Almada, a fazenda de Vitorino dos Santos, falecido em 1768, incluía uma casa que constava de “quatro cazinhas terreas em que entra a caza de fora, alcoba e cozinha”[59]. A propriedade de Ana Rosa, casada com Anselmo António Branco, negociante de vinhos, falecida em 1763, situada na Rua Direita de São Pedro de Alfama constava de “um armazém que serve de ter vinhos” e por cima deste, um andar que constava de uma “casa de fora […] e sua alcoba e por detrás desta outras casas e […] sua cozinha”. O segundo andar, por sua vez, era constituído por uma “caza de fora e na mesma casa hum gabinete e huma alcoba grande e por detrás desta há outra caza […] e na caza de fora para a cozinha há hum corredor com várias cazinhas e cozinha”[60].

 

O termo casa de fora é, como vemos, sistematicamente usado pelos avaliadores nas referências que fazem às divisões. Acreditámos que a expressão seja equivalente à de casa dianteira, encontrada por Iria Gonçalves, e corresponda a uma espécie de sala ou, pelo menos, a um espaço com uma vocação social.

 

Esta organização funcional tripartida, “comum, pelo menos, desde o início da Idade Moderna, onde a sala – o compartimento maior e sistematicamente posicionado junto à fachada principal – corresponde ao embrião de uma área social, a cozinha – salvo raras exceções, posicionada junto ao tardoz do prédio –, corresponde ao embrião de uma área de serviços e o quarto, ou alcova, corresponde ao embrião de uma área privada” denota uma especialização funcional, ainda que incipiente e associada a uma noção de privacidade muito relativa[61]. Este esquema constitui uma espécie de módulo base, para cuja complexificação contribuem fatores, como o tamanho do agregado, a capacidade económica e o estatuto dos seus habitantes. Sabemos que nas camadas mais ricas a necessidade de representação social leva à multiplicação de divisões. Muitas das casas incluem cavalariças, palheiros, cocheiras, e adegas, bem como cómodos para criados, elementos fundamentais para a manutenção do estatuto nobre com profundas implicações nas suas habitações e no número de divisões em particular.

 

Esta realidade está refletida na formulação de tipologias de habitação doméstica definidas por Carvalho Negreiros em dois dos seus textos teóricos e afetos ao domínio da tratadística e do ensino: Jornada pelo Tejo, escrito em 1792, e Aditamento às Jornadas pelo Tejo, escrito em 1796[62]. Nestas duas obras o autor aborda a problemática da habitação doméstica organizando-a por tipologias numa seriação que, tem em conta o seu enquadramento rural ou urbano[63]. Partindo do espaço rural, o autor caracteriza a casa de um plebeu solteiro, propondo que se organize em três espaços fundamentais que, embora não refira explicitamente, correspondem com grande probabilidade a sala, câmara de dormir e cozinha[64]. Esta tipologia serve de matriz, numa sistematização que parte do mais simples para o mais complexo, levando em linha de conta a zona de construção e o estatuto dos seus habitantes. Assim, a casa de um “plebeu cazado” é definida com um programa de “seis cazas […] para hum e outro sexo poderem viver com separação e decencia". Na habitação de “hum mecânico”, o texto prescreve “mais duas cazas além das do seu officio ou oficina”[65]. No domínio da arquitetura senhorial na cidade, Carvalho Negreiros formula um programa de habitação, dividindo-a hierarquicamente em quatro variantes: “habitação de um nobre cazado, habitação de um fidalgo e habitação de um titular ou Grande do Reino, e Palácio Real”. A primeira serve de modelo gerador das outras, ao qual se vão acrescentando divisões e aposentos, que aumentam progressivamente de escala e complexidade numa hierarquização ditada por uma lógica de aparato e complexidade programática.

O texto fornece elementos preciosos sobre as lógicas de organização do interior de uma casa senhorial que, juntamente com as plantas da época e as descrições encontradas nos inventários, ajudam a conhecer estes edifícios. No que diz respeito à distribuição espacial da casa nobre, Negreiros coloca no piso térreo os serviços de apoio à vida quotidiana, como sejam a cavalariça, a cocheira, armazéns, quartos para criados, despensas e despejos. Na articulação destes espaços, o autor menciona a entrada, e para a circulação vertical, a escada principal e as escadas particulares. Os inventários e a obra de Negreiros confrontam-nos com uma matriz idêntica à das plantas pombalinas para uma casa senhorial de que é exemplo a da Rua Formoza (Cf. Figura 1 e 2)[66].

 

 

Figura 1 - Planta do pavimento terreo das casas que se hande fazer no extremo da Calçado da Rua da Formoza. Marquês de Pombal, 12 de Janeiro 1772. Biblioteca e Arquivo Histórico de Obras Públicas (BAHOP),  Lisboa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura 2 - Planta do pavimento nobre das casas que se hande fazer no extremo da Calçado da Rua da Formoza. Marquês de Pombal, 12 de Janeiro 1772. BAHOP,  Lisboa

 

 

 

 

As habitações com andares plurifamiliares, ora se limitavam às três divisões base, ora se complexificavam. A Planta do primeiro pavimento que faz frente à Rua Nova do carmo, e Portas de Santa catarina, e pella Rua do Sacramento mostra as loges ilustra a ocupação funcional de um andar composto por sete cómodos (Cf. Figura 3). Como refere Maria Helena Barreiros nesta habitação, a sala aberta às escadas servia para receber, a seguinte, para estar e receber; a partir desta última sala recolhia-se às alcovas (câmaras) para dormir e jantava-se nas traseiras, no compartimento anexo à cozinha[67]. Esta planta mostra também como estruturas mais simples convivem paredes meias com habitações que se destacam pelo número, complexidade e especialização das divisões.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura 3 - Planta do primeiro pavimento que faz frente à Rua Nova do carmo, e Portas de Santa catarina, e pella Rua do Sacramento mostra as loges

 

 

Fonte: Maria Helena BARREIROS, “Prédios de rendimento […]”, op. cit., p. 29.

 

 

Conclusão

 

Em conclusão podemos afirmar que a casa constitui um importante elemento de diferenciação social, que se materializa e expressa de diferentes formas e em graus diversos em função dos vetores de análise.

 

Os dados analisados põem em evidência que as diferenças entre os grupos ao nível do tipo de propriedade e forma de habitar não são muito expressivas. Em todas as camadas os regimes de propriedade dominantes foram o arrendamento e o usufruto do domínio útil. Com exceção do grupo económica e socialmente menos favorecido, o usufruto do domínio útil é a forma de propriedade com maior peso, sendo igualmente significativo que a propriedade plena aumenta em função do poder económico, representando uma maior proporção nas camadas com estatuto e nível de riqueza superior. Vimos também que a opção pelo arrendamento está fortemente disseminada, mesmo nas camadas com maior estatuto e poder económico. Arrendar, dissemos, não parece desqualificar. Aliás, muitos indivíduos, sendo proprietários de uma ou mais moradias, escolhem ser inquilinos e viver numa casa arrendada, eventualmente mais compatível com o seu estatuto ou melhor localizada. Claro que esta opção pode também ter sido ditada por critérios económicos; tratar-se-ia, muitas vezes, de uma estratégia de poupança e de gestão de uma importante fonte de rendimento.

 

Da análise ao valor das casas concluímos que o valor médio das casas onde habitam os inventariados aumenta em função do património dos seus proprietários. Outro dado importante é o de que à medida que aumenta o nível de fortuna dos agregados, diminui o peso relativo que a casa tem no seu património. A disparidade da média e mediana dos valores das casas e das rendas pagas traduz uma atitude de valorização e investimento no habitat por parte dos grupos mais favorecidos do ponto de vista socioeconómico.

 

A análise das tipologias mostrou que as diferenças a este nível parecem ser bem maiores do que aquelas ao nível do tipo de propriedade que os indivíduos têm sobre a sua moradia. De facto, esta análise mostrou o forte predomínio de algumas tipologias em algumas camadas. É o caso da barraca e da casa térrea (uni e plurifamiliar) que apenas constitui opção de moradia das camadas menos favorecidas. Por outro lado, como seria de esperar, num contexto urbano como Lisboa a casa com andares plurifamiliar é hegemónica, representando a opção dominante em quase todos os grupos. Com efeito, a situação mais comum é os edifícios de habitação dos agregados em estudo conterem fogos arrendados a outros indivíduos. Apenas uma pequena parte dos indivíduos da nossa amostra ocupava a totalidade de um edifício. Esta opção, que passa por habitar uma casa unifamiliar, uma quinta, um palácio e, em alguns casos, uma casa nobre, é mais notória nas camadas com maior estatuto e poder económico (B, C, D e E).

 

O exame da frequência do número de andares que compõem a habitação dos diferentes grupos permitiu pôr em evidência o carácter marcadamente vertical da cidade de Lisboa e constatar que as camadas mais pobres tendem a viver em casas com menos andares do que as camadas mais ricas. Estas categorias ocupam casas mais caras, preferencialmente habitadas apenas pela sua família, e num edifício alto. A verticalidade da casa parece constituir uma espécie de código que consubstancia diferenças de ordem social e económica. Igualmente significativa e expressiva é a diferença ao nível do número de divisões das habitações. Senão veja-se, a maioria (60%) dos agregados da camada mais desfavorecida (A) e cerca de 40% na B reside em moradias cujo número de divisões é igual ou inferior a quatro. Moradias com cinco a sete divisões são também dominantes nos grupos A, B, C e D. Habitações com oito a dez, 11 a 15 e mais de 15 divisões são apenas dominantes nas camadas D e E, constituindo mesmo a opção da esmagadora maioria dos membros deste último grupo.

 

Em suma, os dados mostram que seria mais importante encontrar uma moradia com o número de divisões mais compatível com o estatuto e honorabilidade e necessidades de representação social, do que deter determinado tipo de propriedade sobre a sua própria moradia. A casa constitui assim uma das componentes fundamentais para a construção ou consolidação de uma posição social. Através dela se consolidam afinidades e estabelecem distâncias, capazes de serem lidas e interpretadas.

 



* Artículo recibido el 21 de diciembre del 2015. Aceptado el 26 de mayo del 2016.

[1] Rafael BLUTEAU, Vocabulario Portuguez e Latino, Coimbra, Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728, vol. 2, pp. 172-173.

[2] José-Augusto FRANÇA, Lisboa Pombalina e o Iluminismo, Lisboa, Livros Horizonte, 1965.

[3] Hélder CARITA, Bairro Alto: Tipologias e Modos Arquitectónicos, Lisboa, Câmara Municipal, 1990. Em 1999, o mesmo autor lança novas pistas para a compreensão dos modelos urbanísticos nos finais do século XV e inícios do século XVI. IDEM, Lisboa Manuelina e a formação de modelos urbanísticos da época moderna (1495-1521), Lisboa, Livros Horizonte, 1999.

[4] Nuno Luís MADUREIRA, Cidade: Espaço e Quotidiano, Lisboa, Livros Horizonte, 1992, pp. 113-150 e 151-248.

[5] Nuno Teotónio PEREIRA; Irene BUARQUE, Prédios e Vilas de Lisboa, Lisboa, Livros Horizonte, 1995.

[6] Maria Helena BARREIROS, “Casas em cima de casas: apontamentos sobre o espaço doméstico da Baixa Pombalina” in Monumentos, n.º 21, 2004, pp. 88-97; Idem, “Prédios de rendimento entre o joanino e o tardopombalino” in Património Arquitectónico: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Lisboa, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, 2010, vol. II, tomo 1, pp. 16-39.

[7] Ana Rita Valadas GONÇALVES, Habitação plurifamiliar “não-pombalina”: casos de estudo em Lisboa entre os séculos XVII e XIX. Dissertação de Mestrado em Arquitetura apresentada ao Instituto Superior Técnico da Universidade Técnica de Lisboa, 2011.

[8] Joana MATOSO, A habitação corrente da época pré-industrial em Lisboa: o caso do Bairro da Madragoa. Dissertação de Mestrado em Arquitetura apresentada ao Instituto Superior Técnico da Universidade Técnica de Lisboa, 2013.

[9] Maria Rocha PINTO, A habitação corrente de época pré-industrial em Lisboa: o caso do Bairro da Bica. Dissertação de Mestrado em Arquitetura apresentada ao Instituto Superior Técnico da Universidade Técnica de Lisboa, 2013.

[10] Ana ROSADO, A habitação característica do Antigo Regime na encosta de Santana: tipologias e modos de habitar. Dissertação de Mestrado em Arquitetura apresentada ao Instituto Superior Técnico da Universidade Técnica de Lisboa, 2013.

[11] João Vieira CALDAS; Maria Rocha PINTO; Ana ROSADO, “O prédio de rendimento Joanino” in Cadernos do Arquivo Municipal, 2.ª série, n.º 1, 2014, pp. 130-156.

[12] Nuno Gonçalo MONTEIRO (Org.); José MATTOSO (Dir.). História da vida privada em Portugal.

A Idade Moderna, Lisboa, Círculo de Leitores, 2011.

[13] Chamamos particular atenção para os estudos desenvolvidos por João Vieira Caldas e Maria João Pereira; Hélder Carita; Cristina Costa Gomes e Isabel Murta Pina; e Maria João Ferreira. Cf. Isabel MENDONÇA; Hélder CARITA; Marize MALTA (Coord.), A Casa Senhorial em Lisboa e no Rio de Janeiro: Anatomia dos Interiores, Lisboa; Rio de Janeiro, Instituto de História da Arte – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; Escola de Belas Artes – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014.

[14] Andreia DURÃES, “Casas urbanas: Estudos de caso (Lisboa na segunda metade do século XVIII e inícios do Século XIX)” in Aurora A. SANTOS; Edite M. ALBERTO; Maria João P. COUTINHO (Coord.), Arquivo Municipal de Lisboa: Um Acervo para a História, Lisboa, Arquivo Municipal de Lisboa; Câmara Municipal de Lisboa, 2015, pp. 201-219.

[15] Ordenações Filipinas, Livro I, Tít. 88, §4.

[16] Por esse motivo os estudos que têm incidido sobre os níveis e a composição da riqueza em Portugal têm partido dos inventários. Veja-se, por exemplo, Maria Manuela ROCHA, Propriedade e níveis de riqueza: formas de estruturação social em Monsaraz na primeira metade do século XIX, Lisboa, Edições Cosmos, 1994; Jorge PEDREIRA, Os homens de negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-1822). Tese de Doutoramento em Sociologia apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1995; Nuno Luís MADUREIRA, Inventários. Aspetos do consumo e da vida material em Lisboa nos finais do Antigo Regime. Dissertação de Mestrado em Economia e Sociologia Históricas apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1989. Apesar do carácter relativamente exaustivo do retrato do património dos indivíduos facultado pelos inventários, a sua fiabilidade não está isenta de problemas. Sobre as fragilidades desta fonte leia-se, por exemplo, Maria Manuela ROCHA, Propriedade e níveis […], op. cit., pp. 91-93; Nuno Luís MADUREIRA, Inventários. Aspetos do consumo […], op. cit., pp. 12-14; Olanda VILAÇA; “Podemos conhecer os patrimónios móveis através dos inventários orfanológicos? Os casos de Guimarães e Barcelos (séculos XVIII-XIX)” in Isabel dos Guimarães SÁ; Máximo GARCIA FERNÁNDEZ (Dir.), Portas Adentro: comer, vestir e habitar na Península Ibérica (ss. XVI-XIX), Coimbra; Valladolid, Universidade de Coimbra; Universidad de Valladolid, 2010, pp. 237-250; Andreia DURÃES, “The Empire Within: Consumption in Lisbon in Eighteenth Century and First Half of the Nineteenth Century” in Histoire & Mesure, EHESS - École des Hautes Études en Sciences Sociales, vol. XXVII, 2012, pp. 170-175.

[17] Sobre esta conjuntura económica leia-se Rita Martins de SOUSA, Moeda e metais preciosos no Portugal Setecentista: 1688-1797, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006, p. 192; Nuno Luís MADUREIRA, Mercado e privilégios. A indústria Portuguesa entre 1750 e 1834, Lisboa, Editorial Estampa, 1997, pp. 279-302; Leonor Freire COSTA; Pedro LAINS; Susana Münch MIRANDA, História económica de Portugal. 1143-2010, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2012, pp. 280-281.

[18] Para tal recorremos a um deflector. O instrumento afigurou-se essencial como forma de reduzir o impacto da conjuntura económica na leitura dos dados. A adopção desta metodologia implicou a opção por um indicador específico (Índice Geral de Preços). Optámos pelo indicador de Eugénia Mata e Nuno Valério por estar publicado e cobrir a totalidade do período em análise. Assim, os valores estimados pelos louvados que estão na base do cálculo dos níveis de riqueza foram deflacionados tendo em conta este Índice Geral de Preços. Optámos por submeter o deflector a duas operações que visaram melhorá-lo como instrumento de trabalho. Calculámos as médias móveis a três anos e alterámos o ano-base de 1914 para 1750. O primeiro expediente visou suavizar as oscilações, o segundo ajustar a escala. Na escolha do novo ano-base tivemos em conta o facto de se tratar de um período sem grandes oscilações ao nível dos preços.

[19] Maria Manuela ROCHA, Propriedade e níveis […], op. cit., pp. 94-97; Nuno Luís MADUREIRA, Inventários. Aspetos do consumo […], op. cit., p. 18.

[20] Sílvio CONDE, Construir, habitar: A casa medieval, Braga, CITCEM - Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória, 2011, p. 13.

[21] ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra A, mç. 57, n.º 4.

[22] ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra A, mç. 33, n.º 5.

[23] ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra A, mç. 64, n.º 5.

[24] ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra A, mç. 158, n.º 7.

[25] Local onde se guarda lenha ou madeira para vender. António Moraes SILVA. Diccionario da língua portuguesa, Lisboa, Tipographia Lacerdina, 1813, vol. 1, p. 771.

[26] ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra A, mç. 41, n.º 4.

[27] ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra A, mç. 4, n.º 6, fls. 3-4.

[28] Arquivo Nacional da Torre do Pombo (ANTT), Inventários Orfanológicos, Letra A, mç. 4, n.º 6.

[29] Cf. ANTT, Habilitações da Ordem de Cristo, Letra A, mç. 11, doc. 5.

[30] ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra A, mç. 141, n.º 1, fl. 12.

[31] Informação corroborada na aprovação do testamento. Apesar de não estar devidamente assinalado, o Arco do Penabuquel corresponde a uma das antigas portas da muralha Fernandina de Lisboa, com a qual o edifício contíguo, onde morou António Alves, confrontava. Cf. ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra A, mç. 64, n.º 3; http://alfamadowntown.blogspot.pt/2006/08/beco-do-penabuquel.html

[32] Cf. Paulo Mêrea, “Emprazamento e aforamento” in Boletim da Faculdade de Direito, n.º19, 1943, pp. 141-179. Refira-se que aforar para sempre traduz uma atitude menos atenta na gestão e rentabilização do património, uma vez que, por comparação, o emprazamento (em vidas) facilita a atualização das rendas. Por outro lado, ao evitar a progressiva erosão do direito de propriedade, o emprazamento salvaguarda o direito real sobre a propriedade objeto de contrato. Maria da Conceição FALCÃO, Uma Rua de Elite na Guimarães Medieval (1376-1520), Guimarães, Câmara Municipal de Guimarães, 1989, p. 102; Luísa TRINDADE, A casa corrente em Coimbra: dos finais da Idade Média aos inícios da Época Moderna, Coimbra, Câmara Municipal de Coimbra, 2002 p. 148; Luís Miguel DUARTE; Luís Carlos AMARAL, “Prazos do século e prazos de deus: Os aforamentos na câmara e no Cabido da Sé do Porto no último quartel do século XV” in Revista da Faculdade de Letras, 2.ª série, n.º 1, 1984, pp. 97-134, máxime, pp. 117-118.

[33] Lisbeth Rodrigues chama a atenção para este facto, referindo que, na documentação, os vocábulos “aforamento” e “emprazamento” eram utilizados indistintamente, numa sinonímia que, segundo a autora, constitui um obstáculo à sua diferenciação. Lisbeth RODRIGUES, “Aforamento” in José Vicente SERRÃO, Márcia MOTTA e Susana Münch MIRANDA (Dir.), e-Dicionário da Terra e do Território no Império Português, Lisboa, CEHC-IUL, 2015. Disponível em: http://edittip.net/2015/05/27/aforamento/

[34] António Joaquim Ferreira de Eça e LEIVA, Memorias theoricas e práticas do direito orfanológico, Porto, Tipografia Comercial, 1846, p. 11.

[35] Para os bens vinculados o sistema de transmissão era independente das partilhas. Neste caso o herdeiro estava definido. Os bens vinculados passavam na linha direta descendente ao filho mais velho, neto, filho do primogénito ou, na falta deste, na linha colateral, ao irmão ou sobrinho e apenas entravam na herança os bens livres. Também os prazos em vidas eram transmitidos à margem das partilhas.

[36] António Joaquim Ferreira de Eça e LEIVA, Memorias theoricas e práticas […], op. cit., p. 17.

[37] José Pereira de CARVALHO, Primeiras linhas sobre o Processo Orphanologico, Lisboa, Tipografia Lacerdina, 1816, p. 50-52 e 57. Assim acontece, por exemplo, com a casa de Agostinho da Rosa Martins, mestre do ofício de cabeleireiro que, apesar de ser um prazo foreiro em vidas é descrita e avaliada no inventário uma vez que fora comprada pelo defunto. ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra A, mç. 6, n.º 13.

[38] António Joaquim Ferreira de Eça e LEIVA. Memorias theoricas e práticas […], op. cit., p. 25. José Pereira de Carvalho corrobora esta perspetiva. José Pereira de CARVALHO, Primeiras linhas sobre […], op. cit., pp. 50-52 e 57. O inventário dos bens do desembargador e Fidalgo da Casa Real, André de Sousa Pinheiro da Câmara, inclui as benfeitorias que se fizeram na casa situada na Rua Direita do Paraíso que, segundo o seu testamento, constitui um prazo em vidas. ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra A, mç. 130, n.º 13.

      [39] ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra A, mç. 78, n.º 2.

[40] Annik PARDAILHÉ-GALABRUN, The birth of intimacy. Privacy and domestic life in Early Modern Paris, Oxford, Polity Press, 1991, p. 40

[41] Maria Luiza Pereira de OLIVEIRA, Entre a casa e o armazém. Relações sociais e experiência da urbanização: São Paulo, 1850-1900, São Paulo, Alameda Editorial, 2005, p. 337.

[42] ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra A, mç. 69, n.º 6.

[43] ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra A, mç. 70, n.º 10.

[44] ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra A, mç. 70, n.º 10.

[45] ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra A, mç. 70, n.º 10.

[46] ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra A, mç. 103, n.º 8, fl. 66.

 

[47] Embora para um período anterior, Iria Gonçalves demonstra a disparidade nos preços da habitação em Lisboa nos anos 1458 e 1465. Morar na Ribeira, uma das zonas mais caras, custaria 1.200 reais por ano; enquanto obter uma casa régia no Rossio, onde os preços eram mais acessíveis, implicava despender em média 172,7 reais. Iria GONÇALVES, “Aspetos económico-sociais da Lisboa do século XV estudados a partir da propriedade régia” in Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, n.º 1, 1980, p. 174.

[48] É importante referir que no cálculo do valor do rendimento anual, os avaliadores normalmente incluem o valor da renda da habitação ocupada pelo cônjuge sobrevivente.

[49] A este valor acrescia o imposto da décima.

[50] A datação da reconstrução da cidade de Lisboa era até recentemente um ponto de reflexão pouco conclusivo. No entanto, o trabalho de Ana Rita Reis, Maria José de Freitas Simões e Susana Rodrigues apoiado no levantamento das décimas permitiu quantificar o ritmo da reconstrução numa área que abrange as freguesias da Conceição Nova, Santa Justa, Santa Maria Madalena, São Julião e São Nicolau entre 1762 a 1834. As investigadoras concluíram que o período do governo de Pombal foi o mais dinâmico com forte impulso construtivo. Após o seu afastamento, os trabalhos continuaram mas mais lentamente, arrastando-se pelo século XIX. De facto, durante o governo de Pombal reconstruíra-se na baixa pombalina o equivalente ao reedificado nos trinta anos seguintes. De 1762 até 1777, foram edificados 46% dos imóveis; de 1778 a 1806, 50% e, finalmente, de 1807 a 1834, apenas 4%. Ana Rita REIS, Maria José de Freitas SIMÕES e Susana RODRIGUES, “A décima da Cidade: Contributo para a datação do edificado da Baixa” in Monumentos, n.º 21, 2004, pp. 58-65.

[51] ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra A, mç. 74, n.º 2.

[52] As barracas são unidades habitacionais simples e rudimentares. É crível que esta tipologia se tenha disseminado em solo urbano como resposta à necessidade urgente de alojamento decorrente do terramoto. Em 1758, Joaquim José Moreira de Mendonça na Historia Universal dos Terremotos, dá conta do intenso ritmo de construção das barracas na sequência do violento sismo de 1755, bem como da sua localização, materiais e técnicas de construção. Joaquim José Moreira de MENDONÇA, Historia universal dos terremotos, Lisboa, Oficina de António Vicente da Silva, 1758, pp. 146-147. Apesar da sua simplicidade, as barracas poderiam ter uma especialização funcional elementar, como veremos mais à frente a propósito da descrição da barraca de António Rodrigues, mestre alfaiate, falecido em 1758. Refira-se, porém, que esta tipologia não é exclusiva do período pós terramoto. Ela perpetuou-se como forma de habitar muito para além dos anos subsequentes ao dramático episódio. Esta realidade é confirmada pelo estudo de Ana Rita Reis, Maria José de Freitas Simões e Susana Rodrigues sobre a reconstrução da baixa pombalina. Ana Rita REIS, Maria José de Freitas SIMÕES e Susana RODRIGUES, “A décima da Cidade: [...], op. cit., pp. 61-62.

[53] Nuno Teotónio PEREIRA; Irene BUARQUE, Prédios e Vilas [...]. op. cit., p. 8

[54] Annik Pardailhé-Galabrun encontra o mesmo fenómeno no estudo que desenvolveu sobre a cidade de Paris. Annik PARDAILHÉ-GALABRUN, The birth of intimacy.[...], op. cit.,, p. 8.

[55] Os louvados por vezes adjetivam as divisões e as casas, referindo-se ao seu tamanho. No entanto, não mencionam a sua área (bruta ou útil). Só o confronto com os edifícios ainda existentes do período em análise permite ter uma noção da área dos fogos.

[56] Luísa TRINDADE, A casa corrente […], op. cit., pp. 67-75. Para Lisboa, Iria Gonçalves aponta as duas divisões, casa dianteira (compartimento aberto sobre a rua) e câmara, como solução dominante. Muito embora, o número de compartimentos fosse por vezes superior através da adição de uma cozinha, uma sala ou uma antecâmara. Iria GONÇALVES, O Património do mosteiro de Alcobaça nos séculos XIV e XV, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 1989, pp. 110-111.

[57] ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra V, mç. 1, n.º 5.

[58] ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra A, mç. 16, n.º 14.

[59] ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra V, mç. 14, n.º 6.

[60] ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra A, mç. 12, n.º 5. Ver também Inventários Orfanológicos, Letra V, mç. 28, n.º 9 que complementa o processo ANTT, Inventários Orfanológicos, Letra A, mç. 28, n.º 5.

[61] João Vieira CALDAS; Maria Rocha PINTO; Ana ROSADO, “O prédio de rendimento […]”, op. cit., p. 148.

[62] Carvalho Negreiros era filho de Eugénio dos Santos. Sobre o autor e a sua obra leia-se Paulo Varela GOMES, “Sobre José Manuel de Carvalho Negreiros” in Cultura Arquitctónica e Artística em Portugal no século XVIII, Lisboa, Caminho, 1988, pp. 105-114. Idem, “Jornada pelo Tejo: Costa e Silva, Carvalho Negreiros e a cidade pós-pombalina” in Monumentos, n.º 21, 2004, pp. 132-141 e Hélder CARITA, “José Manuel de Carvalho e Negreiros e a arquitectura civil portuguesa nos finais do século XVIII” in Actas do 3.º Congresso Internacional Casa Nobre - Um Património para o futuro, Arcos de Valdevez, 2011, pp. 595-605.

[63] Hélder CARITA, “José Manuel de Carvalho […]”, op. cit., pp. 598-605.

[64] Ibidem, p. 600. Esta divisão é apresentada nos seus programas de quartéis, onde o autor determina para os officiais inferiores três cómodos: sala, alcova e cozinha. Esta configura também a unidade mínima de habitação, formulada por Carlos Mardel na planta para uma fábrica de chapéus, na qual a casa do mestre apresenta uma sala, duas câmaras e cozinha, e a dos contramestres, sala, câmara e cozinha.

[65] Ibidem, pp. 600-604.

[66] Ibidem, pp. 600-604, citação, p. 604.

[67] Maria Helena BARREIROS, “Prédios de rendimento […]”, op. cit., p. 29.



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Tiempos Modernos: Revista Electrónica de Historia Moderna
ISSN: 1699-7778